A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

15 de abril de 2024

O futebol dos animais

 

E o livro de poesias infantis que você fez com seu filho, O futebol dos animais?

 

Foi uma delícia. Eu sempre falo que a experiência de ter um filho, para um poeta, é inacreditável. Você aprende a ver a construção da linguagem, a construção radical da linguagem. Eu lembro que meu filho, ainda muito pequeno, quando ainda não falava, começou a sacar algumas coisas. Daí ele tinha uma crise de pânico, e apontava para terríveis monstros. E então eu falava “Formiga”, e ele se acalmava. Quer dizer, se aquilo tinha um nome, estava num ambiente doméstico para ele. Era só falar o nome que ele se acalmava, E isso é uma construção de linguagem incrível! Pensar o que tem por trás disso, para entender a força da linguagem, a força da poesia, a importância da linguagem para nós é maravilhosa. Essa capacidade, para criança, de saber que se tem nome está dentro de um espaço reconhecido, doméstico, não perigoso. Se não há nome há um perigo ali. Vivenciar isso, e outras experiências com a criança, é uma experiência muito rica para um poeta.

 

Eu lembro de uma outra experiência forte do Leo. Ele ainda pequeno, dormindo, e eu dormindo numa cama perto dele, quando ele acordou e falou “pai, como chama aquele bicho”, perguntou. “Aquele, pai, que a gente viu agora, com as madeiras nas costas”. Eu digo “você sonhou com ele”. E ele, atônito: “Então, pai, você não pode ver os meus sonhos?”. E sentado, com as pernas cruzadas, fica longamente olhando o vazio. Tentando absorver aquela informação básica de que tinha uma coisa que era só dele, que eram os sonhos. Foi então que percebi que a individualidade e solidão nascem juntas.

 

A gente esquece disso. Na cabeça dele tudo era compartilhado, inclusive os sonhos. De repente ele vê uma individualidade, numa solidão. Ele descobriu que existia um espaço que era só dele, a cabeça, onde tinha os sonhos. A compreensão disso, que para gente já é tão naturalizado, para ele é uma ruptura de todo seu universo conhecido. Então ter filhos é uma grande experiência para se pensar o mundo, e desnaturalizar coisas nossas.

 

Fazer o livro passou por isso, por essas experiências, de brincar com as palavras, de descobrir como ele brinca com as palavras, as reações dele com essas brincadeiras, com a poesia.

Trecho de uma Entrevista retirada do Livro: A Reflexão Atuante -Ensaios interventivos e entrevistas – Sergio Cohn

20 de março de 2024

83- Exterminem todos os malditos

 No deserto você anseia por árvores, não apenas por causa da sombra , mas também porque elas se erguem em direção ao universo. Quando o chão é totalmente plano, o céu torna-se mais baixo. As árvores erguem o céu, porque são imensas e encontram-se longe. As árvores criam o espaço. E assim criam também o universo.

Sven Lindqvist

4 de janeiro de 2024

astronauta

 a João Silvério Trevisan

Estar preso
Não é ficar
Obeso

Estar preso
É não
Se alimentar

Ver filmes
De ficção
Em casa

Sonhar
Com a nasa
Star livre

Astronauta de si

Rodrigo Souza Leão

 

30 de março de 2023

palavras sublinhadas

 

somos naufragos da noite
somos a palavra sublinhada
no interior de algum livro
este laço frágil
lágrima que perpassa
o tempo entre as horas
atravessa
dilacera

somos palavras precárias
petrificadas no hiato cósmico do agora
versos malditos
no caminho já perdido das insônias

entre as pedras da cidade
há um muro de carne
que impele
implode
impera
somos o discurso mudo de mãos entrelaçadas
somos o rumor poético das palavras redescobertas
somos o furor dos passos 

Salvador Passos



4 de março de 2023

sabedoria ausente

no íntimo, todos sabem que poesia é isto:
morrer-se um pouco
esquecer um pouco do que somos
para nos tornamos mais dispersos
pois o vento traz palavras novas
e as frases capturadas desta forma
farejam uma sabedoria ausente na ciência

Salvador Passos

17 de fevereiro de 2023

na última sexta feira



na última sexta feira
perdi as pedras que tinha no meu bolso
aquelas que trouxemos da viagem
na última sexta feira

morri um pouco em mim mesmo

escrevi bilhetes dentro do ônibus
arrastei o tempo que trazia dentro

na última sexta feira

a morte se faz presente com seus silêncios
com sua tecnologia

com seus pedidos de desculpa

(sua culpa mal resolvida)
seus tribunais

inerte

no meio da sala

na sexta feira

na praça de alimentação

com um bilhete no bolso
com todas as conivências e aderências
com todos os seus votos

seus drones

suas valas políticas

e seus saltos soltos
seu olhar absorto


na última sexta feira...
perdi um poema no meu bolso

isso aqui não é um poema
é um pouco de vida
que luta contra a morte

Salvador Passos

te entreguei uma cidade decadente

te entreguei uma cidade decadente 

uma cidade submersa em nuvens de gás lacrimogêneo
uma cidade sitiada por uma beleza claustrofóbica

uma cidade assombrada
carne ácida 

entranha subterrânea 

sopro agonizante
 

meu presente: 

poema mórbido que devora carne humana
poema que naufraga nas palavras 


atravessamos a cidade que nos atravessa
arrancamos seu asfalto com as mãos
sangramos em silêncio  

sagrando o solo


avançamos sobre a noite

resistimos à maré do sono


o poema, deus absurdo
que devora as palavras sem lugar no mundo 

nos incita a abandonar a arquitetura automática dos dias 

mergulhamos um no outro
perante mil olhos carnívoros e cortinas mortas
garganta que arranha a alma 

mortalha de retalhos que se pensam vivos 

paralisados nas esquinas mórbidas

a cidade é um poema submerso

escondido no fundo das gavetas
um deserto que habita nossos corpos


a cidade aproxima nossas mãos 

numa caligrafia trêmula de palavras mudas
e viagens esquecidas
a intimidade da tua mão atravessa o meu silêncio


Salvador Passos