A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

4 de janeiro de 2013

Hino Carioca

Na noite do dilúvio, tentando alcançar a pé minha casa, eu me senti bêbado e louco. Caía uma tromba-d'água do céu, e tão espessa que eu mal conseguia respirar. Minhas pernas venciam a custo a densidade da cheia, que me passava dos joelhos; mas eu prosseguia com raiva dos elementos desencandeados, com raiva da cidade passiva ante sua fúria. Caí e me levantei duas vezes imprecando nomes, desafiando o aguaceiro e sua mortalha de lama, querendo briga.

Seriam pelas quatro da manhã e eu me sentia menino e ao mesmo tempo o último herói do mundo. Era tudo vazio à minha volta, e eu não suspeitava a catástrofe que, naquele momento mesmo, se abatia sobre centenas de lares pobres nos morros, o pé-d'água varrendo casebres que se desfaziam caindo pelas encostas; gente a pedir socorro em plena queda; corpos esmagados de crianças e adultos a misturar seu sangue ao barro imundo. Eu seguia cheio de cólera e euforia, o olho atento aos remoinhos, aos movimentos suspeitos da água, ao chupo dos bueiros abertos, patinhando violentamente no lençol de chuva. Ao passar diante de uma garagem inundada, um velho crioulo guardador compreendeu minha luta e me animou:

- É para frente que se anda...

Eu sorri para ele e sua carapinha branca:

- Fique em paz, meu irmão.

E pus-me a cantar cantos de guerra. Quando alcancei meu edifício, brandi meu punho para o alto. Não, não vai ser nem o ressentimento dos covardes, que cria as ditaduras, nem a fúria dos elementos, que gera a calamidade, que irão impedir o homem de chegar ao seu destino - ai dele! - mesmo sabendo de antemão perdida a grande e fatal partida em que foi lançado. Porque o destino dos homens é a liberdade: liberdade para amar, para optar e para criar; liberdade pura e integral, com a dramática beleza dos elementos desencadeados a que se sucedem céus azuis cheios de luz. Liberdade para viver e para morrer, sem medo.
Liberdade para cantar seu canto rouco diante da carne translúcida das auroras. Liberdade para desejar, para conquistar o que não lhe é permitido pela estupidez da convenções e pela reserva dos bem-pensantes. Liberdade para ganir sua solidão ante o Infinito. Liberdade para suar sua angústia no Horto da dúvida e do desespero, e subitamente explodir seu riso claro em pleno Cosmos:

- A terra é azul!

Esse é o grande destino do homem: remover os escombros criados pelo ódio e partir de novo, no vento da Liberdade, para a frente e para cima. Que venham os tiranos, que o prendam e torturem, que caiam do céu bolas de fogo - e ele levante-se, roto e ensangüentado, e com a força que lhe dá a Vida parte uma vez mais, em direção à Liberdade.

Vai, favelado, meu pobre irmão dos morros, enterra os teus mortos, remove teus escombros, ergue novos barracos de lama e podridão na perigosa vertente das favelas, recomeça tua vida de música e miséria, e depois toma umas cachaças e cai no samba. Carnaval vem aí, para te fazer esquecer teu destino de lama. Ele é a tua liberdade de três dias, até que recomeces a trabalhar, a roubar, matar, a procriar na lama. Tens mais um ano à tua frente. Aproveita bem desse privilégio, porque ninguém pode prever se até o próximo verão uma nova frente fria vinda da Patagônia não vai encontrar uma grande formação cúmulos-nimbos (ou será que estou dizendo bobagem, senhores meteorologistas?) e a cólera de Deus não vai querer cooperar com a obra de extinção sumária das favelas, tão ao agrado de certos arianos cariocas...

Vinícius de Moraes

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