A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

27 de dezembro de 2010

Inversão de perspectiva

Um dia o senhor Keuner foi perguntado sobre o que ele queria dizer com 'inversão de perspectiva', e ele contou a seguinte história. Dois irmãos muito apegados um ao outro tinham uma mania curiosa. Marcavam com uma pedra os acontecimentos do dia, uma pedra branca para os momentos felizes, uma pedra preta para os instantes de infelicidade e desprazer. À noite, quando comparavam o conteúdo do jarro em que eles colocavam as pedras no final de cada dia, perceberam que um deles só continha pedras brancas, e o outro só continha pedras pretas. Intrigados por essa constância cm que vivam o mesmo destino de modo totalmente diferente, combinaram aconselhar-se com um homem famoso pela sabedora de suas palavras. 'Vocês não fala o bastante um com o outro', disse o sábio. 'Que cada um apresente os motivos da sua escolha e explique-os para o outro'. Assim fizeram desde então. Logo verificavam que o primeiro permanecia fiel às pedras brancas e o segundo às pedras pretas, mas em cada jarro havia diminuído o número de pedras. Em vez de trinta, só havia agora sete ou oito. Pouco tempo tinha se passado quando o sábio recebeu nova visita dos dois irmãos. Traziam no rosto os sinais de uma grande tristeza. 'Não faz muito tempo, disse um deles, o meu jarro ficava cheio de pedras de cor-da-noite, o desespero habitava-me permanentemente, confesso que estava reduzido a viver por inércia. Agora, raramente coloco lá mais que oito pedras, mas aquilo que representam esses oito sinais de miséria é tão intolerável para mim que já não posso viver em semelhante estado'. E o outro: 'Quanto a mim, todos os dias amontoava pedras brancas. Agora só conto sete ou oito , mas essas me fascinam tanto que não posso evocar esses instantes felizes sem que deseje imediatamente revivê-los com mais intensidade e, para dizer a verdade, eternamente. Esse desejo me atormenta'. O sábio sorria ao escutá-los. 'Excelente, excelente. Tudo está correndo bem. Continuem. Só mais uma palavra. Havendo oportunidade, perguntem-se: por que motivo nos apaixona tanto o jogo do jarro e das pedras?' Quando os dois irmãos encontraram de novo o sábio foi para declarar: 'Pensamos no assunto, mas não obtivemos resposta. Então perguntamos à aldeia inteira. E veja o alvoroço que causou. À noite, sentadas do lado de fora das casas, famílias inteiras discutem a respeito das pedras brancas e das pedras pretas. Só os chefes e os poderosos se mantêm afastados. Preta ou branca, uma pedra é uma pedra e todas valem o mesmo, dizem eles troçando'. O velho não escondia o contentamento. 'O caso segue o curso previsto. Não se preocupem. Não tardará que a questão deixe de se pôr. Ela se tornou desprovida de importância e chegará o dia em que duvidareis de que algum dias as tenhais levantado'. Pouco depois, as previsões do velho foram confirmadas do seguinte modo. Uma grande alegria tinha se apoderado das pessoas da aldeia. Na madrugada de uma noite agitada, o sol iluminou, empaladas e separadas do corpo, as cabeças recentemente cortadas dos poderosos e dos chefes.

Raoul Vaneigem,
A arte de viver para as novas gerações.

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